(*) José Roitberg
Nesta última semana a BBC disparou para mundo uma matéria que acabou tendo uma repercussão mínima. No jogo da Eurocopa entre Alemanha e Áustria, a TV SRG da Suíça legendou o hino alemão com "Deutschland, Deutschland ueber alles" (Alemanha, Alemanha acima de tudo) utilizando toda a sua primeira estrofe. É bom lembrar que alemão é uma das línguas utilizadas na Suíça.
Em sua superficialidade, a BBC disse que o hino alemão estava em desuso desde do fim da Segunda Guerra. Todo mundo copiou e colou países a fora. A SRG atribuiu o erro a dois jovens editores esportivos de sua subsidiária responsável pelas legendas. Culpe o estagiário... Aí tinha coisa...
Nós não aprendemos o hino alemão no Brasil. Grande parte de nossa população que decora tudo quanto é música popular, não sabe nem o nosso próprio hino, uma verdadeira opereta. O hino alemão também não se aprende em lugar nenhum, exceto na Alemanha e seus núcleos de imigrantes. Na minha visão simplista, sempre que ouvia o hino alemão antes de jogos ou nas vitórias de Schumacher na Fórmula 1 eu me sentia desconfortável. Nunca entendi por quê o hino, um símbolo nazista, tinha sido mantido até hoje. Mal sabia da bizarra verdade. Nada que um bom motivo como este não me levasse a pesquisar.
De nazista, o hino não tem nada! É apenas mais uma percepeção distorcida da história que não nos ensinaram nas escolas. "Alemanha, Alemanha acima de tudo; Acima de qualquer coisa no mundo..." A melodia, que quem conhece música clássica alguma vez na vida estranhou ao ouvir num disco de Haydn (seria este compositor nazi??) foi escrita pelo grande Joseph Haydn em 1797 como um hino de aniversário para o imperador (kaiser) austríaco Franz II. Era conhecida por "Gott erhalte Franz den Kaiser" (Deus salve o Kaiser Franz). Na Áustria se fala alemão.
A letra símbolo das imensas concentrações de tropas nazistas no estádio olímpico de Berlim e em outra partes da Alemanha, foi escrita por August Heinrich Hoffmann von Fallersleben em 1841, contemporâneo de Karl Marx, praticamente um século antes da Segunda Guerra Mundial, quando ele morava em Heligoland, na época conquistada sob domínio inglês. Ainda nem havia Alemanha como país: eram os Estados Germânicos.
Há um grande número de países onde músicas pré-existentes foram escolhidas como hinos. Bem diferente do Brasil com hino composto para tal finalidade. Só como exemplos: Estados Unidos, Israel e... Alemanha... O "Das Lied der Deutschen" (O Hino dos Alemães) foi escolhido como hino da Alemanha na República de Weimar, em 1922, quatro anos após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Tinha duas estrofes. O NSDAP - Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, o Partido Nazista, cantava apenas a primeira estrofe: essa, da confusão desta semana.
A segunda estrofe foi descartada pois é: "As mulheres alemãs, a lealdade alemã, o vinho alemão, a música alemã; vão reter em todo o mundo seus belos laços; e inspirarnos a nobres gestos durante toda nossa vida." Se você assistir novamente o Grande Ditador, de Chaplin, verá praticamente este texto na última parte do filme quando os pensamentos do personagem vagueiam pelos campos... Bem curioso isso... Creio que todos concordamos que nazistas cantando essa estrofe seria completamente fora de contexto mesmo.
Portanto, o hino reduzido à primeira estrofe passou a ser um dos hinos alemães junto com o "Horst-Wessel-Lied" (Hino de Horst Wessel - popularizado com o nome do autor, originalmente definido com Die Fahne Hoch - A Bandeira Está no Alto". E foi cantado assim, apenas a primeira estrofe, até fim do Terceiro Reich em 1945.
Há um caso histórico registrado na Copa do Mundo de 1954. Adivinhe onde? Acertou: Suíça. Adivinhe quem ganhou? Acertou: Alemanha. Adivinhe que hino todo o estádio cantou? Claro: a primeira estrofe do "Das Lied der Deutschen" acompanhando a banda, para desespero da comissão alemã, da FIFA e dos organizadores. Não por serem nazistas, mas simplesmente por não saberem que não era mais o hino! Parece que não sabem até hoje. É o que ocorreu na semana que passou.
Dois anos antes, em 1952, a Alemanha criou uma terceira estrofe, conhecida por "Deutschlandlied" (Hino da Alemanha), mas com o sistema de mídia da época e o país lutando pela sua reconstrução, pouco ou nada se soube disso. O país ainda estava divido entre russos, americanos, ingleses e franceses. E se foi divulgado não ficou na memória dos povos. Portanto a confusão é simples: existem três estrofes com a mesma melodia.
Uma ficou na memória coletiva, uma foi descartada e outra é a válida.
Se tivessem mudado a melodia, nada disso teria ocorrido. Quem conhece apenas uma das estrofes acha que aquela é a correta. Desde 1952 o hino alemão é o que segue.
Einigkeit und Recht und Freiheit
Für das deutsche Vaterland!
Danach lasst uns alle streben
Brüderlich mit Herz und Hand!
Einigkeit und Recht und Freiheit
Sind des Glückes Unterpfand;
|: Blüh' im Glanze dieses Glückes,
Blühe, deutsches Vaterland. :|
(tradução livre)
Unidade e justiça e liberdade
Para a terra natal da Alemanha!
Para isto vamos todos nos esforçar
Irmanados com coração e as mãos!
Unidade e justiça e liberdade
São o que nos leva a um bom destino;
|: Floresça neste destino abençoado,
Floresça Alemanha nossa terra natal:|
Note que em 1952 com o país retalhado entre os Aliados, o hino pedia "unidade". Era praticamente subversivo...
É claro que isso é pedir demais da BBC ou das outras grandes mídias baseadas na banalização e superficialidade... Pelo menos eu, nunca mais vou mentalizar "Alemanha, Alemanha Acima de Tudo" nas competições esportivas com participação alemã e sim "Unidade e Justiça e Liberdade."
(*) José Roitberg - Diretor de Comunidade na TV - FIERJ
Um comentário:
Excelente texto! Não conhecia bem a história e foi muito informativo.
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