por José Roitberg - jornalista
No dia 30 de abril, pouco antes do feriado e quando a comunidade se mobilizava contra a visita de Ahamadinejad, o Supremo Tribunal Federal revogou toda a Lei de Imprensa, a 5.250, de 09/02/1967. O pedido de revogação foi feito por apenas uma pessoa: o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ). Meu susto com isso é perceber que à revelia da sociedade e do legislativo, uma pessoa e o judiciário podem mudar a história do país e jogarem todo o setor da mídia em um vácuo de legislação onde realmente não se sabe mais o que pode e o que não pode.
A Lei de Imprensa não era uma leizinha qualquer. Tinha 77 artigos e pendurada nela um monte de regulamentações e legislações em vigor. Pelo entendimento geral, quando uma lei é revogada, todas as outras que dependem dela, ou todas as regulamentações sobre ela caem também e deixam de vigorar. Essa deveria estar sendo a discussão do momento no país, mas quem vai discutir? A grande mídia? A grande interessada em não ser legislada? É óbvio que não. Estamos "não vendo" isso nos jornais, revistas, TVs e blogs.
Em relação a nós, judeus, o que esta revogação significa? Em primeiro lugar, há quase dois anos atrás quando o Ministro Ayres Brito (STF) decidiu de forma "monocrática" – aprendi que esta palavra existia naquele momento -, ou seja, decidiu sozinho, revogar 22 artigos dos 77, já caíram automaticamente as regulamentações e as conseqüências destes artigos. O que mais nos importa é a queda dos artigos que definiam que qualquer pessoa que se sentisse ofendida podia pedir o direito de resposta sobre calunia, difamação ou injúria sofrida por terceiros. Para ficar bem claro: agressões racistas contra os judeus eram respondidas com base nisto. Se o direito de resposta não fosse concedido, ir-se-ia à justiça e ele seria dado após um processo com desgaste para o lado perdedor, ou seja, o da grande mídia, com multa etc. Logo, um acordo rápido e uma publicação imediata saíam muito mais barato.
Desde a decisão do ministro que votou a favor de S. E. Castan, mentiroso sobre o Holocausto, em seu recurso ao STF (perdeu, sua condenação foi mantida), calúnia e difamação passaram somente à esfera penal. Isso significa que apenas o ofendido pode reclamar. Aliás, reclamar não: precisa registrar um boletim de ocorrência e passar por todos os trâmites legais, julgamento, instâncias diversas até uma decisão final, onde uma calúnia, uma mentira lançada no papel ou no vídeo já terá sido esquecida, o estrago feito e a resposta sem efeito. Antes, até dois anos atrás, o Direito de Resposta era regulamentado de forma sumária para um prazo de 24 horas após a publicação ou na próxima edição.
De forma bem clara: entramos num sistema "norte-americano" onde a ofensa e ameaça generalizada é protegida pela "liberdade de expressão" e a ofensa e ameaça à pessoa, entidade ou empresa especificada é crime. Uma organização não pode entrar na justiça por ofensa generalizada e coletiva. Há poucas semanas atrás uma decisão destas foi tomada por um juiz no Rio de Janeiro. Preciso concordar que ele agiu corretamente, mas que a lei está errada. Um jornalista muçulmano entrou com um pedido de proibição da música de Carnaval "Cabeleira do Zezé" alegando que ela era ofensiva ao Islã e ao profeta Maomé. Na sentença o juiz concordou, mas indeferiu declarando que o jornalista nem era o profeta em questão nem o "islã", portanto não era "parte ofendida", não podia entrar com a ação. Apóio esse colega jornalista. Se a música não era ofensiva há 40 anos atrás quando foi composta, hoje, a luz da realidade, é. Isso é o mesmo que pode acontecer com as ações coletivas em defesa da comunidade judaica como um todo.
O racismo e o antissemitismo são quase sempre generalizados enquanto o racismo conta negros é quase sempre individualizado. Neste momento isto faz toda a diferença. Não há mais lei que impeça o discurso escrito ou transmitido pela mídia com conteúdo racista. Digo isso porque nos restou apenas a Lei Paim. Ela nunca protegeu as minorias e nenhum racista jamais foi punido por intermédio dela. Mas ela é clara e deveria bastar. Precisa ser divulgada e utilizada!
A Lei Federal 9.459, de 13 de maio de 1997, diz claramente no artigo primeiro: "Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação e de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", vigésimo: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa , § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo; e § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação ou publicação de qualquer natureza. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa." Mas ninguém pagou pelos crimes por estes artigos. Um dos motivos é porque não há uma definição clara no ambiente legal e jurídico do que é "discriminação", "preconceito", "distribuir", "veicular" e "divulgação".
Recebe-se muitas reclamações de publicações com a face de Hitler na capa. Viu o texto da lei? Onde enquadrar? Na minha visão pessoal o rosto de Hitler é o maior símbolo do nazismo, mas na visão do judiciário símbolo é apenas símbolo gráfico ou uma foto pode ser símbolo? Isso nunca foi discutido. Ora, revisão do Holocausto é nazismo? Revisão é um processo histórico legítimo, rever com base em nova documentação e novas provas. Mentir sobre o Holocausto é nazismo? Mentir é dizer que não aconteceu, desconsiderar provas e documentos ou dizer que elas não são válidas. Revisar e mentir são coisas diferentes. O revisionismo é um processo normal do estudo da história. O revisionismo do Holocausto é apenas um amontoado de mentiras, portanto calúnias, portanto não mais passíveis de processo coletivo ou por terceiros. Apenas os mortos poderiam reclamar a prova de que realmente morreram...
Só que isto é uma pequena parte do que foi revogado, apenas uma interpretação do que nos vai atingir de forma pesada, caso não se use a 9.459 de forma incisiva. Logo no artigo 1 da ex-Lei de Imprensa, havia a garantia da liberdade de busca e veiculação da informação. Isso caiu. Não era tolerada propaganda de guerra, subversão ou preconceito. Isso caiu. É livre a publicação desde que não sejam clandestinos. Agora podem ser... A exploração dos serviços de radiodifusão (rádio e TV) dependia de permissão ou concessão na forma da lei. Será que a lei que regulamenta não caiu automaticamente?
Era proibida a propriedade de empresas jornalísticas por estrangeiros. Isso caiu. Havia a definição do que é empresa jornalística. Não há mais. No exercício da liberdade de expressão não era permitido o anonimato. Agora é. Era assegurado o sigilo das fontes. Na minha visão, então não é mais... Isso aqui foi só até o artigo 7, eram 77.
O artigo 16, um dos mais importantes, proibia a divulgação de fatos falso, ou verdadeiros truncados ou deturpados que perturbem a ordem social, o sistema financeiro, imobiliário ou mercado de títulos e valores. Sem este artigo, não há freio! Antes era crime, agora: pode! Os artigos 37, 38 e 39 definiam quem, dentro da empresa jornalística era responsável penal – em sequência - pelos crimes cometidos. Agora, ninguém mais é responsável. O artigo 58 exigia que as empresas jornalísticas mantivessem seus arquivos de material veiculado por 60 dias. Agora não precisam manter. Algo que foi ao ar, pode ser suprimido das fitas e servidores da empresa sem a menor consideração legal.
O artigo 61 dizia que estão sujeitos a apreensão legal os impressos que contiverem preconceitos de raça e cor. Agora não há mais dispositivo sumário para a apreensão exceto na Lei Paim. Isso foi muito utilizado no caso de Mein Kampf, de Protocolos e de livros de revisionismo do Holocausto. Estes dispositivos eram especificamente sumários devendo haver decisão judicial em no máximo 24 horas. Geralmente era muito veloz a a polícia já chegava ao local com a ordem judicial de apreensão. Agora é processo longo.
Quero deixar bem claro que na história da imprensa brasileira durante o regime militar as prisões, indiciamentos e recolhimentos não foram nem por calúnia, nem por difamação, nem por mentir, nem por racismo, mas por dizer a verdade. E não foram amparados apenas na Lei de Imprensa, mas principalmente nos Atos Institucionais de exceção e na censura prévia permitida por decretações de "estado de guerra" e "estado de sítio."
Nesta quarta-feira (6 de maio), estes assuntos, principalmente o Direito de Resposta que agora é apenas mais uma tênue garantia constitucional (art 5) não regulamentado, serão discutidos em um seminário nacional no Rio de Janeiro e espero trazer novas informações e definições. Por enquanto, estamos num limbo, numa terra quase sem lei e ninguém se atreve a imaginar onde isso irá nos levar. Só para constar, há três projetos de novas redações para a antiga Lei de Imprensa que tramitavam no Congresso, o mais antigo, há 14 anos. Certamente, serão arquivados e a atualização da regulamentação pós regime militar mantendo as garantias ao cidadão ficarão ausentes por muito tempo.
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