Desde o filme nos cinemas aquela história me atingiu tão profundamente que não quis nem saber de pesquisar a origem daquelas bizarrices todas. Marca-me ainda o fato do mundo judaico ter ficado calado, enquanto Noé queria matar as netas, enquanto Noé era o algoz de uma bela menina que seu filho Cam queria desposar, enquanto Noé dirigia a construção da arca, feita "na verdade" por anjos gigantescos caídos transformados em pedra vulcânica. Anjos estes que implantaram o inferno ao redor da arca quando "descendentes de Caim" comandados por um tal de "Tubalcaim" a atacavam. E matando o maior número possível de gente impura e infiel, os anjos reconquistaram o lugar deles no céu.
A bizarrice continua com Tubalcaim invadindo a arca e sobrevivendo às àguas, tramando a morte de Noé através de seu filho Cam. Tublacaim embosca Noé dentro da arca e lutam até a morte, que chega para Tubalcaim, por sua própria faca dada anteriormente a Cam, para que ele matasse o pai. À morte, Tubalcaim dá a Cam a pele da serpente do Eden e diz que ele se tornou um homem de fato: matar outro homem era o sinal de maturidade.
Tempos depois da arca estar encalhada e a vida prosseguindo, Cam joga fora a pele da serpente e vai embora, nos dando a entender que o Dilúvio de nada adiantou e Cam, prossegue na superfície da Terra levando o peso de Caim nos ombros, enquanto Sem, sua esposa e filhas gêmeas dariam uma nova origem à humanidade e, dentro da aceitação teológica dariam origem aos ramos semitas. Sem ou Shem é atribuído como ancestral de Abraão.
O mundo pré-diluviano mostrado é um mundo tecnológico, já na Idade do Ferro (quando historicamente se estava na Idade da Pedra), um mundo devastado por uma poluição material das "fábricas" e de uma poluição humana: a dos descendentes de Caim.
Noé era neto de Matusalém, que por sua vez era filho de Enoch, filho de Seth o terceiro filho nominado de Adão e Eva, segundo a Torá. A tecnologia era tão interessante que Noé possuía pedras mágicas em brasa que ateavam fogo rapidamente a qualquer coisa. A saber, os cientistas que trabalham coletando provas geológicas do dilúvio o datam de 10.000 anos atrás e não de uns 4.120 anos que dariam as contas da narrativa da Torá.
Se você estudou em escola judaica, católica ou evangélica, e principalmente se não viu o filme, deve achar que estou louco, pois a história de Noé e do Dilúvio não é essa. A Torá afirma que Noé era um homem justo e trouxe a serenidade para o mundo, e não um matador de bebezinhos. Nesta versão da história ele não os mata, no fim das contas.
A narrativa do filme vem do Livro de Enoch que não consta da Torah e do Judaísmo, e não consta do catolicismo, tendo sido retirado da narrativa canônica cristã no século 4 dc, quando os livros que compõe o Novo Testamento foram determinados.
Enoch era filho de Seth e neto de Adão, portanto um homem da terceira geração. Enquando Noé era da décima. A Torá atribuiu os ímpios sobre a Terra aos descentes de Seth e não aos descendentes de Caim. Pela Torá Noé e sua família ficaram 12 meses acordados cuidando dos animais, e na narrativa do filme, usam uma poção mágica para adormecer todo os animais até o Dilúvio se resolver.
E toda esta narrativa bizarra de Noé e do Dilúvio, dos descendentes de Caim, dos anjos caídos, surgem o Livro de Enoch, considerado parte do judaísmo místico. Historicamente ele é datado pelos estudiosos em teologia do período de 300 ac, somente. A última parte do livro é atribuída para o final século 1 ac. A certeza dos estudiosos sobre estas datas vem do fato de haver partes dele nos Papiros do Mar Morto, o que é um dos motivos para o judaísmo, como religião, não se concentrar muito nestes escritos, que na verdade compõe um judaísmo místico alternativo que deixou de existir. Os redatores do Livro de Enoch atribuiram a redação ao próprio Enoch, que teria escrito sobre o Dilúvio e tudo mais, cerca de 1.000 anos antes de acontecer.
Mas se você lê a narrativa da Torá e da Bíblia sobre a perspectiva mística, então estas datas são irrelevantes para você. Historicamente parece ter havido uma revisão onde os redatores livram Enoch de ser o responsável pela maldade sobre a Terra e a atribuem à Caim, coisa até lógica, pois quando Caim é banido do Éden ele vai para a Terra de Nod, se casa com a filha de Nod e daí vem suas gerações não nominadas. Isto continua impresso na Torá e na Bíblia até hoje, mas ninguém se importa. Assim parece que havia um dilema teológico. Todos os homens descendentes de Adão eram maus? Tanto dos filhos de Seth quanto dos filhos de Caim?
E no Livro de Enoch existem os Nefilim, os tais anjos caídos transformados em pedra, e a narrativa alternativa da história de Noé e sua família. Assim Hollywood pega uma texto que faz parte apenas dos escritos das Igrejas Ortodoxas da Etiópia e Eritréia, aceito também pelos Beta Israel (Falashas, que são etíopes) e o publicam como a narrativa da verdade para o mundo inteiro.
Uma das definições para “história” é: “Um conjunto de afirmações aceitas e difundidas por um grupo social”. Neste conceito o livro de Enoch é uma verdade para cristãos ortodoxos minoritários de dois países do leste africano para mais ninguém. Não é a nossa historia ocidental.
Só que Enoch está em alta e possui até cultos e defensores. É só procurar na Internet. O Livro de Enoch é a base para uma das melhores séries de TV dos últimos tempos: ‘Supernatural’, da Warner. Note que são os mesmos anjos assassinos e caídos e personagens estranhos como o poderosíssimo Metatron (nome em hebraico) que você acha ter sido inventado mas consta no livro de Enoch, no capítulo ‘Livro das Parábolas’. Metatron, seria o próprio Enoch, transformado em anjo.
Qual teria sido a intenção e a finalidade de tal roteiro e tal filme? Apenas comercial?
José Roitberg - jornalista e pesquisador
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