por José Roitberg
Existe uma ação da Igreja Anglicana que ficou quase um século esquecida. No final do século 18 foi criada um versão da Bíblia católica a ser utilizada institucionalmente para a conversão de escravizados negros africanos e também para lhes ensinar a leitura. Ficou conhecida como Slave Bible, Bíblia dos Escravos.
O título completo era: “Partes da Bíblia Sagrada selecionadas para uso do escravos negros nas Índias Ocidentais Britânicas”, isto é, Caribe, Jamaica, Barbados e Antígua. Na imagem, um exemplar impresso em Londres em 1808. De fato, foi uma operação conjunta entre Igreja e a Cia da Índias Ocidentais. Este exemplar está exposto no Museu da Bíblia de Washington. Existem apenas três cópias conhecidas e apenas uma nos EUA.
A explicação não é minha e sim de Anthony Schmidt, curador associado do museu. “Por volta de 90% do Velho Testamento foi removido, bem como cerca de 50% do Novo Testamento. Existem 1.189 capítulos da Bíblia protestante e esta Bíblia tem apenas 232.” Todas as passagens de momentos que levaram à rebeliões e as rebeliões propriamente ditas foram removidas do texto.
Os textos que falavam em liberdade foram removidos, enquanto os que reforçavam a escravidão foram mantidos, como em Efésios 6:5 “Escravos, obedeçam a seus senhores terrenos com respeito e temor, com sinceridade de coração, como a Cristo.” Esta linha era a utilizada pelos católicos e protestantes pró-escravidão e pelos próprios escravos, como demonstração da “normalidade” da situação horrível deles.
Na Bíblia dos Escravos existe o Êxodus. O texto passa de “E Israel disse: isso já basta; José meu filho ainda está vivo; eu vou e o verei antes de eu morrer”, para, “E o povo foi para o Sinai. A Mensagem de Deus foi lançada da montanha. No terceiro mês quando as crianças de Israel saíram da Terra do Egito, no mesmo dia eles entraram na vastidão do Sinai”.
Na Bíblia dos Escravos, os judeus nunca foram escravos no Egito, nunca se rebelaram e nunca foram libertados por Deus.
Isso servia aos interesses da Igreja para não dar qualquer tipo de esperança aos escravos de serem libertados pelo Deus que agora acolhiam e que os acolhia. Escravidão é o correto. Liberdade não existe.
A Bíblia dos Escravos foi mantida fora dos holofotes, é claro, até que algum curioso decidiu tira-la de uma prateleira na Fisk University em Nashville, no Tennesee. Imagine o susto da primeira leitura. Isso aconteceu apenas em 2016 e o livro foi enviado para Washington em 2017. Em 2019 foi publicada pela Amazon e está disponível para Kindle.
Nenhum dos autores sobre o tema se arriscou a afirmar que essa Bíblia absolutamente adulterada tenha sido utilizada pelos missionários com os escravizados nos Estados Unidos ou que tenha existido projeto semelhante em outra língua. No Brasil a língua da Igreja era o latim. Sabemos que não ensinaram escravos a ler, muito menos em latim. Mas é provável que a catequese de escravizados e indígenas eliminasse um Deus que liberta escravos.
Pela existência conhecida de apenas três exemplares, é provável também a existência de uma ação institucional da Igreja para a destruição do texto.
A Bíblia dos Escravos é um dos exemplos mais poderosos já testemunhados de manipulação usando uma narrativa controlada. A fé cristã, uma religião em que um terço do mundo confiava para trazer conforto, descanso espiritual, paz e salvação, era narrativa controlada, tornando a Bíblia dos Escravos a ferramenta de propaganda definitiva e a maior mentira já contada.
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