quarta-feira, 15 de julho de 2009

Enem – MEC Pune Quem Respeita o Sábado Com Cárcere Privado

Escrevi um artigo anterior onde definia a violação constitucional criada pela marcação do ENEM para um shabat e ainda por cima em Sucot, importante data judaica. Essa violação era apenas do artigo quinto da Constituição no que diz respeito à liberdade de credo e culto, sendo o culto a expressão do credo no dia-a-dia. No Brasil ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em função da Lei. ENEM não é lei: é portaria do Ministério da Educação. Lei é algo elaborado coletivamente por nossos representantes eleitos, e aprovada por eles em nosso nome. Portaria é algo assinado por um ministro ou chefe de departamento como bem entender, sem submeter sua funcionalidade ou validade ao escrutínio da sociedade. E os brasileiros adoram portarias e não reclamam desta forma de legislar e estabelecer o controle – ilegal – sobre a sociedade.

 

Vou deixar claros alguns pontos. Eu não sou um judeu ortodoxo ou que se considere religioso. Estou defendendo aqui a Constituição Brasileira e não o direito deste ou daquele grupo. O artigo quinto, não fala dos direitos das minorias. Fala dos direitos individuais de cada cidadão. A Constituição é a Lei aprovada pela maioria que em nosso país preserva os direitos das minorias até o nível individual. Em vários países isso não acontece, principalmente nos "democráticos" comunistas ou teocráticos.

 

Dentro do judaísmo existe até uma definição para quem respeita o sábado, como definido na lei das leis, na lei que originou todas as outras, os Dez Mandamentos: "respeitarás o sábado." O judeu que respeita o sábado é chamado de "shomer shabat", o que guarda o sábado. Portanto há os que guardam, os que não guardam e os que guardam em parte. Uma minoria guarda completamente. Mas tratamos de direitos constitucionais individuais. Não se pode definir que todos os judeus religiosos guardam o sábado, pois não teríamos os ramos conservadores, liberais, reformistas e outras. Os ortodoxos são uma maioria entre os judeus religiosos.

 

O judaísmo tem três pilares: torah, avodá (trabalho) e guemilut hassadim (justiça social). Neste caso, avodá não é o seu trabalho para o seus sustento, mas o trabalho pelo judaísmo em geral, voluntário ou remunerado. As pessoas normalmente se dividem entre estes pilares e muitas conseguem atuar em dois deles, pouquíssimas em três. Mas são a essência do judaísmo e interdependentes: não existe um sem os outros dois. Quem está especificamente direcionado ao pilar torah, guarda o sábado.

 

Entre estes grupos e até mesmo alguns considerados ortodoxos há um relaxamento do que pode e não pode ser feito no sábado. Como exemplo, o deslocamento. Não é aceitável nas grandes cidades que uma definição religiosa de não usar veículos – de quando eram puxados por animais, pois o animal também deverá descansar no sábado, bem como os empregados e na época, escravos, até mesmo a terra -  e se deslocar apenas a pé até a sinagoga se sobreponha à realidade das distâncias. Melhor ir com veículo que não ir.

 

Mesmo em grupos tidos como ortodoxos há uma visão de que o judeu deve fazer "o que é possível" dentro da sua realidade e do local onde vive. E isso basta. Não fazer o que é possível, para estes grupos é errado. Então quando há uma exceção como uma prova pública no shabat isso entra claramente no "desta vez não é possível guardar o sábado completamente" e isso deveria bastar – na minha opinião.

 

Para manter-se apenas dentro da lei judaica é preciso viver em alguns lugares bem específicos de Israel. Não imagine por um momento que Israel é um país que para no sábado. Lá é mais fácil e mais simples parar. Nos núcleos ortodoxos tudo para. Mas os serviços públicos essenciais, o serviço médico, bombeiros, polícia, todos os ramos militares e toda a estrutura de turismo não para. Alguns serviços ao público, como ônibus e trens, por exemplo, param por força de acordo sindical. O aeroporto, por outro lado, não para.

 

Agora que as inscrições para o ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio estão abertas escutei por aí que há um campo no formulário para o candidato marcar se respeita o sábado. Não há. Li em notas curtas em vários jornais brasileiros que o MEC fez um acordo com judeus e adventistas do sétimo dia: não fez. Apenas "disse" que há uma exceção. Não a encontrei em nenhum lugar do site do ENEM, nem no formulário de inscrição. Se está escondida dentro de um dos dois pdfs de legislação pouco me importa, porque uma exceção destas deveria estar claramente indicada, no bom portal que abriga tudo relacionado ao ENEM, algo, pelo menos como "últimas notícias." Não podemos assumir que as crianças que vão se inscrever entendam ou saibam manusear e abrir arquivos em pdf.

 

Neste caso a decisão do MEC publicada pela imprensa, aparentemente sem uma portaria ou qualquer texto oficial que a ampare, diz que tal aluno "poderá começar a responder a prova a partir do por-do-sol." Ora... Com isso o Ministério da Educação criou o crime anunciado, a punição coletiva criminosa com cárcere privado e tortura para quem respeita o sábado!!! Porque o aluno que optar por responder ao ENEM a partir do por-do-sol terá que se deslocar até o local de prova no horário normal (violando seu direito ao culto) e ficará em sala isolada das 12h30 até às 17h30, cinco horas de cárcere privado e tortura, aguardando o por-do-sol como punição por ser temente a Deus e cumprir seus mandamentos!!!

 

Essa situação é inadmissível tanto para indivíduos judeus quanto para indivíduos adventistas do sétimo dia, os atingidos por este serviço de deseducação federal! O agravante deste crime que o Estado Brasileiro está prestes a cometer é que será cometido por adultos contra menores de idade e aí vai-se também o Estatuto do Menor e do Adolescente! As leis rasgadas na frente de todos. Os direitos individuais jogados no lixo! Se o Estado puder jogar este ou aquele direito individual no lixo no momento em que desejar sem a reação da sociedade, o Estado se verá compelido a repetir e a violar outros direitos fundamentais individuais da mesma forma!

 

Isso não é um desabafo individual ou em defesa de um grupo! É uma questão de princípios. Nenhum direito meu está sendo violado pelo ENEM, mas os direitos de outras pessoas estão e se todos se calarem, quando o meu direito for violado, todos também se calarão!

 

Já há discurso antissemita em portais da internet e blogs por conta desta questão. A retórica é simples e fulminante: "segundo a Constituição todos são iguais perante a Lei portanto se pune a todo os não-judeus e não-adventistas com a obrigação de chegar no horário sob pena de encontrar as portas fechadas e não poder fazer a prova, enquanto judeus e adventistas poderão chegar ao por-do-sol." Como qualquer discurso antissemita, não importa que não seja verdade e que os dois grupos "privilegiados" tem que chegar no mesmo horário de todos os alunos e aguarda 5 horas para começar a fazer a prova, espera que vai detonar seu desempenho e capacidade para responder às questões. O antissemitismo vai ainda mais longe, quando estes autores dizem claramente "que é uma manobra de judeus e adventistas para fraudar o ENEM e fazer as provas já com os resultados em mãos."

 

Esta aberração não precisava acontecer. Para que marcar essa prova insignificante e não obrigatória para um fim-de-semana e não para um dia normal onde tais problemas não existiriam? Ninguém responde a isso.

 

Mas se o ENEM não é obrigatório, por que criar este caso todo? O ENEM era uma prova, contestada por alunos, por professores, por diretores de escolas, por educadores criada para avaliar o ensino de segundo grau (ou médio) no Brasil: gerar uma estatística para nortear as políticas públicas de educação. Não era uma prova para avaliar o aluno. Muito menos, não era uma prova que agora é a primeira fase OBRIGATÓRIA do vestibular de todas as universidades federais do país. Portanto, o que tinha uma finalidade agora tem outra. Não fazia diferença participar ou não da prova. Agora se o aluno quiser ter ensino público superior Estatal Federal é obrigado a fazer o ENEM. Portanto, o cidadão é obrigado a fazer algo e violar sua crença por algo que não é Lei, portanto isso é ilegal sob todos os aspectos.

 

Agora vou defender uma alternativa: ignore as universidade federais.  Elas são o melhor exemplo da falência do MEC. Centros de excelência são apenas centro de funcionários grevistas, com publicações de fortíssimo caráter antissemita e anti-Israel. Há falta total de condições de ensino e de aprendizado. Isso se aplica a quase todas as unidades sucateadas, com algumas exceções louváveis. Ignore a possibilidade de estudar de forma paga pelo governo porque você não paga seu estudo e não recebe instrução realística: é uma troca justa. Eu sou ex-aluno da UFRJ e posso falar isso com a maior tranqüilidade.

 

E nestes anos de ENEM qual foi o verdadeiro impacto dele no ensino médio no Brasil? Por acaso algo melhorou nas escolas públicas? Claro que não! O ensino público é considerado uma doença crônica no Brasil.

 

Agora vou criar outro caso. O filósofo Santayana tem uma frase célebre: quem não conhece o passado está condenado a repeti-lo. A parte de umas poucas reclamações de famílias de judeus que guardam o shabat, ninguém mais se importa com a questão. Estas famílias estão repetindo o passado, por ignorá-lo. Tudo que diz respeito ao "caso ENEM" nada mais é que o cerne da "Questão Judaica" de Bruno Bauer na Europa Central na primeira metade do século 19. Era um momento em que se discutia se os judeus poderiam ou não ter direitos políticos plenos – as mulheres também não tinham. Na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos os judeus tinham direitos plenos. No Império Austro-Húngaro, nos Estados Germânicos, na Península Ibérica, no Império Turco-Otomano e no Império Russo, não tinham. A Rússia desta época era "livre de judeus" confinados ao assentamento de Pale – região da Europa Central do Mar Báltico ao Mar Negro, onde se encontram Polônia, Ucrânia, Lituânia, Estônia, Bielorrúsia, Bessarábia e outras regiões onde nossos antepassados viveram por Lei, não por escolha. Era uma região tampão cheia de judeus entre os dois impérios rivais – Russo e Austro-Húngaro. Mesmo no Brasil pré-independente os judeus não tinham direitos plenos e sequer podiam construir uma sinagoga no térreo com frente para a rua!

 

Bruno Bauer levanta a seguinte questão: como poderiam os judeus ser funcionários públicos, policiais, militares, políticos (votar e ser votados) se seguiam suas leis religiosas e não as leis do Estado válidas para todos os cidadãos? Note que nessa época havia cidadãos e não-cidadãos nos Estados... Se houvesse uma sessão do Parlamento no sábado os políticos judeus iriam? O soldado judeu estaria no quartel no sábado ou lutaria? Um judeu na limpeza pública carregaria lixo no sábado? E nas outras dezenas de datas especais e jejuns obrigatórios judaicos, dizia Bauer. Mas ele estava errado. Errado de forma inversa a que o governo brasileiro está hoje.

 

Para Bauer, todos os judeus seguiam a risca as leis religiosas judaicas, o que é o discurso antissemita até os dias de hoje. Como em qualquer época, havia os que seguiam e os que não seguiam. Aos que seguiam, que optassem por não ser servidores públicos ou políticos por exemplo. Para o governo brasileiro todos os judeus não seguem à risca as leis religiosas judaicas. Também é uma forma de antissemitismo. Não posso permitir que um pensador ou um Estado defina o que eu sou. Eu é que defino. Penso, logo reclamo!

 

Para se ter uma idéia de como Bauer estava errado – no fim das contas alguns estados deram direitos plenos e outros deram parciais – cerca de 70 anos depois desta discussão, na Primeira Guerra Mundial, de uma comunidade de cerca de 500.000 judeus alemães, cerca de 100.000 fizeram serviço militar obrigatório de guerra – soldados e oficiais - e participaram do conflito onde 12.000 judeus alemães morreram em combate. Um número significativo recebeu medalhas por coragem e mérito em combate. Portanto na mesma Alemanha de Bauer o judeu "secular" e o religioso conviviam em sociedade, cada um cumprindo com sua parte na sociedade em geral e na comunidade judaica.

 

Não se pode admitir que uns 150 anos depois da Questão Judaica ser debatida à exaustão, definida e resolvida, que as pessoas que não conhecem nada disso, porque história é chato para caramba – mas cai no ENEM – iniciem novamente este processo, por  um lado lamentável, em sua excência, por outro lado que levou os judeus a serem cidadãos como quaisquer outros em quase todos os países. Você pode não se dar conta, mas judeu e cidadão é algo muito recente na história da humanidade.

 

Como exemplo cito que todos os homens de minha família que tiveram idade para serviço militar no Brasil desde os anos 1930 se tornaram oficiais da reserva sendo que dois são ex-combatentes da FEB. Quase todos os de minha família também serviram como mesários, apuradores e presidentes de seções eleitorais em dezenas de pleitos. Em ambos casos sempre de forma voluntária, pois são atividades que são direitos do cidadão e vamos sempre nos comportar pelos direitos e deveres. Em nenhum momento fomos mais ou menos judeus por causa disso. Eu pessoalmente deixei de trabalhar nas eleições quando alguns anos atrás elas caíram no Iom Kippur, e aí não tem negócio: meu direito a liberdade de crença e culto deve prevalecer e prevaleceu sem nenhuma dificuldade. Fato que não aconteceu nas últimas eleições presidenciais com muito judeus.

 

Para fechar: quando eu citei acima que é uma questão de princípios e de confronto entre deveres do cidadão e seus direitos individuais, disse que não se pode deixar o governo violar estes direito. O governo deve ser o zelador destes direitos. Se deixarmos as violações ocorrerem daremos força a que continuem. Pois bem judeus trabalharam nas eleições passadas, obrigados por Lei e judeus não votaram (ou não deveriam ter votado – eu não votei) porque o Iom Kippur não termina no por-do-sol como o Estado não entendeu, mas uma hora depois, quando as seções já estavam fechadas. Protestamos e não adiantou na eleição lá atrás. Protestamos e não adiantou na última eleição no Iom Kippur. Agora temos o ENEM no shabat e o que virá em seguida?

 

José Roitberg - jornalista

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